A recente expansão do crédito consignado privado no Brasil, permitindo o uso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) como garantia do empréstimo, reacendeu um debate crucial sobre a proteção financeira do trabalhador e o risco do endividamento.

Carteira de trabalho e notas de dinheiro representando o FGTS

Embora a medida vise injetar liquidez na economia e reduzir o risco para as instituições financeiras, ela expõe o trabalhador a uma fragilidade ainda maior.

O Dilema da Garantia: FGTS vs. Emergência

O cerne da preocupação reside no papel original do FGTS. Criado em 1966, ele foi concebido como uma poupança de emergência forçada, garantindo um suporte financeiro ao trabalhador demitido sem justa causa.

Ao permitir que até 10% do saldo do FGTS ou 100% da multa rescisória sejam utilizados como garantia, o trabalhador compromete seu "colchão" financeiro. Em um cenário de desemprego, ele descobrirá que o fundo que deveria ampará-lo estará total ou parcialmente retido pelo banco para amortizar a dívida, deixando-o sem recursos no momento de maior vulnerabilidade.

O Custo-Benefício Invertido

A decisão se torna ainda mais questionável quando comparamos as taxas:

  • Custo do Empréstimo (Consignado): As taxas de juros do consignado privado, mesmo sendo mais baixas que as do crédito rotativo, ainda orbitam em torno de 60% ao ano (a.a.) ou mais, dependendo da instituição.
  • Rendimento do FGTS: Historicamente, o rendimento do FGTS (que inclui a taxa referencial mais 3% ao ano, mais a distribuição de lucros) tem ficado abaixo da inflação (IPCA) na maior parte dos anos.

Na prática, o trabalhador está usando um dinheiro que rende pouco, mas é vital em uma emergência, como garantia para pagar juros muito elevados. O custo de oportunidade de comprometer o FGTS é extremamente alto.

Cenário Econômico e o Risco Sistêmico

O contexto macroeconômico brasileiro amplifica a necessidade de cautela.

1. A Selic Persistente

Apesar dos sinais de desaceleração da inflação (IPCA), que acumulada em 12 meses está em queda, o mercado projeta uma taxa Selic estável em 15,00% até o final do ano. Uma Selic elevada mantém o custo do dinheiro alto para bancos e, consequentemente, para o consumidor final, mesmo em linhas de crédito mais "baratas" como o consignado.

2. Expansão do Endividamento

A legislação atual permite que o trabalhador comprometa até 35% de sua renda mensal com o consignado. A facilidade de acesso a essa linha, somada à atratividade da garantia pelo FGTS, pode levar o trabalhador a um superendividamento de longo prazo, reduzindo drasticamente sua margem de manobra financeira.

Essa situação é um risco não apenas individual, mas sistêmico: uma alta taxa de desemprego combinada com o endividamento massivo pode levar a um aumento nos calotes, afetando a estabilidade financeira.

Recomendações de Planejamento Financeiro

Para o trabalhador que avalia o uso do FGTS como garantia, o planejamento financeiro rigoroso é a única forma de mitigar os riscos:

  • Comparação Rigorosa e Transparência: Não se prenda à primeira oferta. Utilize plataformas digitais regulamentadas, como a "Crédito do Trabalhador", para comparar o Custo Efetivo Total (CET), que inclui juros, tarifas e encargos.
  • Avalie o Risco de Demissão: Calcule o impacto real do comprometimento dos 35% de renda e o que significa ter seu fundo de garantia comprometido. Se o risco de desemprego for elevado, a linha de crédito deve ser evitada.
  • Uso Estratégico da Dívida: O consignado só deve ser considerado para quitar dívidas de juros muito mais altos, como as do cartão de crédito rotativo (que podem ultrapassar 400% a.a.) ou cheque especial. Jamais use para consumo.
  • Cuidado com a Renovação: Evite a prática de "refinanciamento" (ou "troca com troco"), onde o trabalhador renova o empréstimo para obter mais dinheiro, alongando o prazo e pagando juros sobre juros.

Conclusão

O crédito é uma ferramenta poderosa para a economia, mas a responsabilidade de gerir o endividamento e, sobretudo, de preservar a poupança de emergência (FGTS) recai integralmente sobre o trabalhador. A facilidade pode se tornar uma armadilha, transformando a garantia em uma fragilidade.